MONAQUISMO E ESPIRITUALIDADE ANGLICANA


CRISTIANIZAÇÃO, MONAQUISMO E ESPIRITUALIDADE
Notas sobre História do Anglicanismo a serviço da Espiritualidade Anglicana

Ir. Agostinho, OASB


          O presente ensaio é um estudo teológico-histórico da espiritualidade anglicana nas suas origens. Pretende-se, aqui, [a] retomar o processo de cristianização das Ilhas Britânicas, [b] compreender as diferenças entre monaquismo celta e monaquismo romano, e [c] defender a seguinte tese: a espiritualidade anglicana tem como base suas origens históricas monástico-celtas. Esta base, com efeito, é a xenitéia, prática específica do monaquismo celta. Para tanto, retomaremos o período da cristianização das Ilhas Britânicas e mostrar as influências do Monaquismo Celta na formação da Antiga Igreja Celta-Romana-Cristã.

  1. CRISTIANIZAÇÃO DAS ILHAS BRITÂNICAS

          É muito comum denominar os povos originários que habitavam as Ilhas Britânicas (as futuras: Inglaterra, Irlanda, Escócia e Gales) de “Celtas” (FLORES, s.d., p.10), porém, os celtas também são migrantes nestas terras. Celta é o nome dado ao povo guerreiro e invasor que provavelmente tem origem do centro da Europa (alguns dizem do norte da Grécia). Eles invadiram e impuseram sua cultura nas Ilhas Britânicas como um todo, destruindo as culturas pré-celtas. Os celtas, dizem, eram bem religiosos e místicos, tinham devoção à natureza e valorizavam o papel da mulher na religião, eram grandes artistas e sacrificavam seres humanos em rituais religiosos. Não obstante, eles eram bem divididos entre si, o que contribuiu, mais tarde, para sua ruína nos confrontos com o exército romano (OLIVEIRA, 2017, p.18).
O processo de cristianização das Ilhas Britânicas só ocorre após a “concretização” da dominação romana por Júlio César no ano 55 a.C[1]. Quem levou o cristianismo, às Ilhas Britânicas, é ainda um mistério. Lendariamente, se atribui este fato a uma estória medieval (provavelmente de matriz celta) que alegava a ida de José de Arimateia a Glastonbury. Para Cavalcanti (2008), não foi uma ofensiva programada vinda do Oriente (ou do Ocidente) que deu origem ao cristianismo britânico. Teria sido o esforço de leigos, principalmente romanos convertidos. Oliveira (2017), compactuando desta ideia, acrescenta que ela é bem plausível graças à logística que existia na época do Império Romano: perseguições, mercadores, grandes extensões de estradas do Império, a segurança no mar garantido pelo Império, a predominância das línguas latina e grega etc. Os sítios arqueológicos deste período, a qual está uma Capela em Kent e vários símbolos cristãos como o “XP”, de algum modo, revelam isto. Tertuliano (160-220), em seu tratado Contra os judeus do s, já mencionava a existência de uma comunidade cristã britânica no ano 200 em regiões não atingidas pelos romanos[2].
De qualquer forma, os registros históricos remontam com segurança ao século IV a presença de cristãos nas Ilhas Britânicas; inclusive de bispos, como é o caso da devoção a Santo Albano, o primeiro mártir em terras inglesas (305). Nos termos do Venerável Bede, Albano é o primeiro cristão digno de registro na Brentanha (VARGAS, s.d.). É também do quarto século a controvérsia promovida pelo monge Pelágio, que teve suas ideias posteriormente condenadas. Pelo que se sabe, Pelágio teria sido um celta irlandês romanizado. Sabe-se também da presença de três bispos ingleses (bispos de Carleon, Londres e York) no Concílio de Arles na região da Gália, no sul da França (Britânia Menor, hoje conhecida como Bretanha francesa), em 314, evidenciando o avançado desenvolvimento do cristianismo britânico no século IV. Não se sabe se estiveram no Concílio de Nicéia (325), mas Atanásio informa que a Igreja inglesa se submeteu às suas deliberações. (FLORES, s.d.; OLIVEIRA, 2017). Por outro lado, sabe-se que no concílio de Rimini (351) novamente aparece as figuras de bispos britânicos (VARGAS, s.d.).
De fato, o cristianismo que se instalou nas Ilhas Britânicas entre Celtas e Romanos (não-cristãos) é reconhecido como “cristianismo celta”. Porém, Oliveira (2017) explica que, muito antes de o cristianismo se encontrar com os celtas, vários elementos da cultura romana pagã já haviam penetrado na cultura celta residente na Inglaterra. Assim, a cultura celta que conhecerá o cristianismo não é uma cultura pura, mas uma “cultura celta-romana”. É desta Igreja Celta (irlandesa e escocesa) que sairão os missionários para “recristianizar” os ingleses nas invasões dos anglos, jutos e saxões, como Patrício e Columba.
Por meio dos relatos acima, que foram oferecidos por Bede, é que se reconhece uma Igreja Celta-Romana-Cristã[3] independente da experiência Romano-Cristão (OLIVEIRA, 2017). Ela funcionou até o século VII como um ramo autônomo do Cristianismo, se comportando como parte da Igreja Católica (universal), mas sem vínculos formais ou subordinação direta à Igreja de Roma.
A partir do século V, as regiões sul e centro da Inglaterra foram invadidas por anglos, saxões e jutos, que a descristianizaram ou re-paganizaram. Surge neste período: São Patrício, responsável pela chamada “conversão da Irlanda” e sendo reconhecido como herói nacional até hoje. Além de Patrício na Irlanda, é importante lembrar: Paládio (também na Irlanda), Nínian e Columba (na Escócia) e Davi (em Gales) (CAVALCANTI, 2008). Foi por isso que o Papa Gregório Magno, decidiu enviar uma força missionária para aquelas regiões, formada por 40 monges beneditinos, sob a liderança de Agostinho, que se estabeleceram na cidade de Cantuária (Canterbury) perto do litoral. Além do objetivo de re-cristianizar a Inglaterra, aqueles monges deveriam tentar levar a Igreja Celta a se vincular a Roma, respeitando, tanto quanto o possível, os seus costumes (CAVALCANTI, 2008).

  1. O MONAQUISMO BRITÂNICO

          Não se sabe ao certo as origens precisas do monaquismo cristão. Em consonância com Vargas (s.d), monge é aquele que segue uma Regra antiga, porém antes mesmo do estabelecimento das Regras, várias experiências anacoréticas no Oriente (Egito, Palestina e Síria) já existiam baseada na contemptus saeculi. O monaquismo foi também uma prática de protesto contra o sistema de Cristandade que se implantava no cristianismo a partir do século IV (GOMES, 2001). Sem entrar no mérito da questão, é certo que a experiência monástica remonta uma das experiências espirituais mais antigas do judaico-cristianismo.
          Na esteira da tradição oriental, o monaquismo ocidental teve um papel fundamental para a concretização do cristianismo no Ocidente. Com os excessos da vida anacorética no século IV, os quais foram vistos com desconfiança entre pagãos e bispos, surge o modelo cenobita (koinos bios) de vida, o qual, como defendia Basílio, o monge além de se submeter à vontade de Deus, deve também se submeter à caridade fraterna (GOMES, 2000). Vários nomes podem ser lembrados aqui como exemplos de fundadores de Regras e vidas monacais: São Pacômio, São Basílio (na Grécia), Santo Agostinho (Africa) e, não menos importante. São Bento (Itália) (VARGAS, s.d.). É um tempo “pneumático”, no sentido que de a Regra estava assentada no espírito do fundador, por conseguinte, uma proliferação de regras passara a surgir (GOMES, 2000).
          Sem querer fazer uma exaustiva análise dos dois modelos de monaquismo, de modo geral, o Monaquismo Britânico adquiriu características bem peculiares. Segundo Vargas (s.d), o monaquismo celta, graças a São Patrício, distanciou-se do europeu (romanos) nos seguintes traços:

MONAQUISMO EUROPEU
MONAQUISMO CELTA
- o bispo tinha a jurisdição dos mosteiros na sua diocese.

- o bispo tinha plenos poderes.





- tinha funções administrativas.
- o abade era a entidade soberana e muitas igrejas tinham alguns bispos entre os seus monges.
- o bispo não tinha jurisdição territorial
- o monge ascendia ao episcopado por causa da santidade da sua vida e eram-lhe atribuídos os poderes de:
- ordenação;
- confirmação;
- não tinha funções administrativas, as quais eram exercidas por um abade.
FONTE: VARGAS, s.d

          Os monges celtas irlandeses tinham características bem peculiares como a mística, o ascetismo e missionariedade. Não pode esquecer-se da forte influência cristão-oriental, sobretudo, a doção de sua versão do Credo. Esta fusão céltico-oriental – valorização da natureza e contemplação litúrgica – destacava-se e, ao mesmo tempo, se diferenciava da visão mais jurídica, conceitual-filosófica e institucional que começava a se instaurar no Cristianismo Romano-Ocidental. Neste sentido, o centro de convergência da vida cristã não era a Diocese e seu modelo paroquial, tal como se dava em Roma; mas era o Mosteiro e sua influência sob a autoridade do Abade.
As características acima evidenciam o trabalho missionário inculturado de São Patrício, o qual, à medida que ele viajava, fundava novos mosteiros. Estes mosteiros se caracterizavam, primeiramente pela formação de “monges missionários”, traço característico dos monges celtas. Um monge celta fazia de sua vida uma “peregrinação por Cristo”. Em segundo lugar, não havia, propriamente, uma Regra em específico, ficando a cargo de o monge adotar aquela que achasse mais conveniente (VARGAS, s.d.). Esta ausência de regras, por sua vez, levou o monaquismo celta a uma rigidez e uma austeridade de vida. Assim, a terceira característica deste monaquismo é a renúncia da vida mundana (vida ligada aos prazeres) em favor de uma vida contemplativa de oração – com tendências eremíticas – ainda que em uma comunidade. Ora, como compreender um monge missionário e eremita ao mesmo tempo? A missão era a grande característica do monge celta, porém ela não poderia ser feita esquecendo-se da vida contemplativa, influência esta vida do cristianismo ortodoxo (VARGAS, s.d.). Para melhor entender este paradoxo, mergulharemos na espiritualidade monástica celta.

  1. ESPIRITUALIDADE ANGLICANA

          Como foi visto, a Igreja Celta-Romana-Cristã, independente do Império Romano Cristão, tem em suas origens a experiência monacal, não a experiência monacal europeia (romana), mas uma denominada celta. Este dado permite dizer que, se existe um traço determinante na espiritualidade que fundou a experiência eclesial anglicana, este deve remontar esta experiência monacal celta.
          A opção fundamental do monge é a profunda “busca de Deus”, ou seja, o “Deus querere” (GOMES, 2000). E para satisfazer esta busca, ele sacrifica tudo e, a partir deste sacrifício, ele se encontra, existencialmente, em “deserto”: lugar da luta contra seus próprios interesses. Esta busca com sacrifício o faz estrangeiro (xenós), o faz empreender uma xenitéia (peregrinação). Gomes (2000) sustenta que o termo xenitéia diz mais da situação existencial do monge, pois diz de um certo “estranhamento”; já o termo latino peregrinatio, tem mais a ver com a situação peregrina dos penitentes medievais.
          A xenitéia tem seus fundamentos nos próprios textos bíblicos, que não faltam exemplos (desde Abraão ao próprio Cristo). E sua expressão é muito clara na experiência monacal celta. Nela há um predomínio da formação escolar dos monges, principalmente o estudo das línguas. Todo estudo era em latim e, assim, o monge era obrigado a ser bilíngüe. O bilingüismo celta se diferenciava do bilingüismo romano (primcipalmente o beneditino) pelo seu purismo e rigorismo, enquanto que estes últimos tendiam à variações do latim, como o românico ou romanço. Esta característica purista celta é oriunda da região da Gália, principalmente no século III (GOMES, 2000)
          Outra característica do monaquismo celta é a unidade institucional no Mosteiro pela ausência de cidades. Os mosteiros realmente apresentavam a única e verdadeira experiência eclesiástica, i. é, eles absorviam as elites das comunidades cristãs, os líderes dos clãs celtas, e as funções eclesiais episcopais. Os monges, em sua grande maioria presbíteros, animavam as comunidades como curas aninarum. A busca de Deus se caracterizava pelo ideal eremítico, e este ideal era essência da vida cenobítica. A comunidade monástica se reunia em torno de um abade pneumático, por meio do qual se retirava os ensinamentos, os conselhos e as penitencias. O monge celta, antes de tudo, era um penitente e praticava cotidianamente uma vida austera: jejum, salmodia coral pesada, sono curto, e mortificações. O mosteiro celta era isolado e sempre ficava em regiões pantanosas ou florestais, o que permitia ao Abade cuidar de todas as funções episcopais necessárias. Era também o abade quem determinava se o monge estava ou não pronto para xeniteia: para a migração ascética, um auto-exílio. Foram estas práticas peregrinas que permitiram os monges celtas virarem grandes missionários em terras estrangeiras, como são Patrício, São Columbano e outros (GOMES, 2000).
          A partir do relato acima é possível pensar que as bases da espiritualidade anglicana estão na xenitéia. Em outras palavras, a espiritualidade anglicana, nas suas origens, entendia que o cristão é um xenós, um peregrino que se sacrifica na busca por Deus. Essa busca deve ser feita a partir de uma sólida preparação espiritual como a contemplação, a oração pessoal e o estranhamento. Este último, na verdade, é o mais difícil. Estranhar-se é uma disposição existencial cuja expressão é o não-reconhecimento de si mesmo, o não bastar-se. É a inquietude do coração tão bem expressada por Agostinho de Hipona e coração aquecido de John Wesley. Os monges celtas criam que a xenitéia não era uma decisão subjetiva, mas era percebida pela comunidade a qual reconhecia que havia chegado a “hora”. O peregrinar se dava por meio deste reconhecimento comunitário, que, uma vez reconhecido, passava a ser um mandato, tal como o Senhor mesmo fez com seus discípulos: “Ide!”.
          Neste sentido, a espiritualidade anglicana deve passar por este estranhamento que é, em certa medida um esvaziamento em busca daquele que pode preencher. Nesta busca peregrina, a missão é uma conseqüência e uma contribuição para a busca pessoal. É buscando o Senhor, buscando a Deus que a missão nasce. Assim como o monge celta que se auto-exilava para se fazer um com Deus e acabava assumindo a missão de pregar em terras estrangeiras, assim também pode ser o cristão anglicano. Aquele que tem a missão não como um objetivo pastoral, ou uma forma de auto-afirmação psicológica. Pelo contrário, é no reconhecimento dado pela comunidade desta busca de Deus que nasce o missionário. O missionário faz missão não porque se acha mais preparado para tal serviço, ele faz porque busca desesperadamente a Deus e faz tudo para encontrá-lo. É pela ausência e não pelo excesso que a missão se sustenta. Missão é peregrinar (xenitéia), é descobrir no intimo e no aval da comunidade que chegou a hora de sair de si e buscar radicalmente a Deus.

Referências
CAVALCANTI, R. Primeira Aula: Uma história comum. Recife: SAT, 2008.
FLORES, J. S. Curso de Imersão ao Anglicanismo. História do Anglicanismo I. Centro de Estudos Anglicanos, s.d.
GOMES, F. J. S. Peregrinatio e stabilitas: monaquismo e cristandade ocidental do século VI a VIII. Textos de História, v.09, n.1/2, 2001.
OLIVEIRA, V. L. S. de. História do Anglicanismo na Inglaterra. São Paulo: Fonte Editorial, 2017.
VARGAS, M. E. O monaquismo. Dos primórdios ao século VII. Disponível em: http://www.ipv.pt/millenium/15_arq1.htm. Acesso em 25/06/2017.



[1] “... mas Roma levou um século para dominar toda a Grã-Bretanha, com suas colônias, estabelecimentos militares e entrepostos militares, em uma era de prosperidade, que durou três séculos” (CAVALCANTI, 2008, p.04).
[2] “As ilhas Britânicas nunca foram totalmente conquistadas pelos romanos, devido, tavez, às dificuldades geográficas encontradas em outras partes da região da qual estamos falando” (OLIVEIRA, 2017, p.16).
[3] Entendendo “Romano” aqui não como “Romano-Cristão”, mas como “Romano-Não-Cristão”. (N. do A.).

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